«Al Skua Ma Titio»: Tempo de Famintos e Tempo de Festivais

Desde intérpretes consagradas às intérpretes emergentes habitam actualmente a paisagem musical cabo-verdiana, que se projecta aquém e além fronteiras. Exemplos de vozes e compositoras consagradas: Cesária Évora, Lura, Nácia Gomi, Gardénia Benrós, Mayra Andrade, Nancy Vieira, Maria de Barros, Sara Tavares, Gutty Duarte, etc. Diante desta conquista das mulheres no campo musical, decidi então indagar as (re)presentações sobre as mulheres, na música cabo-verdiana, com intérpretes masculinos. Uma visita ao Youtube revelou-se assim suficiente para uma breve incursão, destacando o imaginário sexista, as relações conjugais e afectivas, a sexualidade e os papéis sociais atribuídos aos homens e às mulheres, no contexto cabo-verdiano. Uma análise da pornolodia traria elementos de interesse, mas não é o propósito deste texto de carácter essencialmente pedagógico. Para uma melhor percepção das preocupações que aqui exponho, basta colocar a entuação nos termos de uma analogia entre o Tempo de Famintos (romance de Luís Romano) como narrativa da degradação da dignidade humana e o Tempo de Festivais como metáfora da contemporaneidade.


TOP 12: (Re)presentações sobre as Mulheres na Música Cabo-verdiana

Num intervalo entre os parágrafos, aproveitei para escutar músicas da terra sobre o amor romântico. Dei por mim a escutar: 1. «Força de Cretcheu» de Eugénio Tavares; 2. «‘M Cria Ser Poeta» de Paulino Vieira; 3. «Padoce de Céu Azul» de Vlú. Estas mornas – melhor, hinos nacionais – (re)presentam todavia, ao mais alto nível, a imagem feminina como objecto de inspiração do sujeito compositor. Embora sem fazer referência ao corpo e nome de mulher, Eugénio Tavares suporta-se na imagem de uma musa inspiradora e no amor romântico, denotando as influências do classicismo. Tal morna retrata o amor de um médico amigo do poeta e de uma mulher que dizem ter sido a mais bela da ilha Brava. Esse lírismo, como se por uma influência transgeracional, é denotado na composição de Paulino Vieira e de Vlú, reforçando os temas do amor e da beleza. Ao atravessar a esquina do Youtube, tropecei-me: 4. «Lapidu na Bo» de Pantera; 5. «Lua» de Princezito. Pantera singulariza-se por uma peculiar escavação cultural. Influenciado pelo afrocubanismo, Princezito mergulha a sua poesia na realidade concreta. Faz parte da denominada Geração Pantera que supera a distinção dicotómica de tradicional e moderno.

6. «Feia, Entri Spada i Paredi» de Finaçon é talvez a música mais popularizada desta minha selecção. Representa a sátira mordaz sobre as estratégias de reconversão social (ta codji purga pam odjal ta ba liceu/dentu se bata brancu albo/bende pastel pa cumpra papel/pe ca fica sima mi), os atributos da beleza como a textura de cabelo (feia cabelo bedjo), as estratégias migratórias (sabi qui nem xuxo/fazi artimanha pa ba Alimanha/ma tinha nota sem manha). Paralelamente, há uma crítica às redes de relação na administração pública insular que privilegiam pessoas próximas do poder (Ba djobe trabadjo ess fica so ta badjam/Ess botam cu nha tabulero pamo M ca tem ninguen na pulero).

7. «Preta» de Vadú (RIP). Tal como Princezito, Vadú é da Geração Pantera e influenciado pelo afrocubanismo. A sua composição é sensível à realidade concreta. Retrata a carga negativa que recaí nesta mulher fora dos ideais de beleza crioula, valorizando a sua centralidade na recomposição familiar. Aponta para as atitudes e as práticas dos homens na família, subvertendo assim o olhar normativo cabo verdiano em torno da violência contra as mulheres que é socialmente legitimado como uma justificação do comportamento das mesmas. Deste modo, suplica a esta mulher o uso da violência, com o fito de reencaminhá-lo. Todavia, poderia ser uma metáfora diferente da violência. Tenho ainda reticências à estrofe que atribui responsabilidades domésticas a esta mulher (cuidar do tal cavalo e de tal vaca!), enquanto ele vagueia-se por aí com o violão.

8. «Mi c’fome mi é pior q’Juquim» de Mota. Faz anedoticamente uma ponte entre o tempo das telenovelas brasileiras e os papéis domésticos atribuídos às mulheres, recorrendo ao humor de Sintanton (Mi c’fome mi é pior q’Juquim/hoji é 3 dia q m’cumé/inda por cima, botá salgá quel arroz). Lembrei me da «Linga d’Sentonton» de Cordas do Sol (Maria/Panhá bo enxada e boloi/Bô pô ne cucruta/Bô r´bá té quel lombe//Bé bé bé//Bé pnhá mi ma fjom/Na quel merada/Bô fzé bô merenda).

9. «Al skua ma titio», Djmalcriod Verão 2010. É necessário observar o olhar sexista. A composição tem como pano de fundo a cidade do Mindelo. Tal uso do corpo e da sexualidade como estratégia (não apenas feminina!), inclusive a proliferação da prostituição, não é um fenómeno recente. Igualmente, o problema existe um pouco por todo o arquipélago e na diáspora. Na letra desta música, há uma competição sexual masculina para a posse do corpo feminino. Todavia, o vencedor é o tal Titio, economicamente em situação privilegiada. Porém, embora seja de conhecimento geral que, «al skua ma titio», paira no ar um silêncio público e político cúmplice, diante das renovadas estratégias de sobrevivência da camada jovem das classes populares, de acesso ao financiamento para a manutenção no ensino superior ou de consumismo e lazer, neste país de desenvolvimento intermédio. É conhecida a existência do Titio. Titio Interno e Titio Externo. Dos emigrantes, políticos, burocratas, empresários aos narcotraficantes; dos antigos colonizadores aos actuais aventureiros, nas ilhas da morabeza.

10. «Beijo no Pescoço» de Pulonga-L Bita. Esta letra ilustra um olhar de humor do interior diasporizado para a capital do país de origem, circundando em torno das habilidades de sedução femininas. Sem questionar as habilidades de traição masculinas, evidencia as renovadas estratégias em acção na capital. Mostra como tais habilidades corrompem ou comovem as forças de segurança. Isto é, após a intervenção das forças de segurança, a resposta do policial foi de que não conseguiu capturar a fulana, acusada de pirataria. Tal video clip traz informações adicionais de relevância. É que, para 2 jovens bailarinos, há 3 jovens bailarinas, uma disponível para os momentos sobrantes. Isto diz muito da realidade social cabo-verdiana, no país e na diáspora.

11. «Na kel dia tão lindo» de Blyck Tchutchi. É do tempo de canequinha, e hoje até o intérprete sorria, no video clip, diante das interrogações então vitais (oh minina undi bu nobu fika?/undi ki bu nobu fika?/undi ki bu nobu fika?/lá Txom Bom di Mangue/na pé di bananera). É o Blyck de «ku forminga ku tudu gosta!» Ups, tropecei-me em «Cumpadri» dos Tubarões (kumpadri, kumpadri, modi ki nhu manshi/ku um pé di kalsa ramangadu ti kanela). Para completar este quadro humoristico, à custa de desgraças das mulheres, poderia acrescentar também «Maria cze qbo tem» de Djon de Cornélia que apresenta uma narrativa do controle social sobre as Marias.

12. «Avenida Marginal» dos Tubarões, composição de Manuel de Novas e interpretação de Ildo Lobo. Trata-se de uma sátira mordaz que evoca o palco da prostituição no Mindelo (Oi c'sabura ta brinca na mei di crioula/Num silencio di madrugada/Ta ouvi mar squebra na areia[...]//ô djack/Bêm ness calor di madrugada/Bêm ness calor nô ta passá sabe). Pode-se comparar com esta música: «Bedja pá Badja» de Sousa que é uma letra do funaná que sustenta as atitudes das classes populares masculinas de desvalorização das trabalhadoras do sexo e uma ambígua desvalorização das suas companheiras.

Enfim, tais circunstâncias possibilitam um entendimento de que as mulheres destas ilhas cristianizadas têm sido retratadas como um singelo cântico divinal e uma maldição infernal, beatificadas e crucificadas, centralizadas no dever de servir e marginalizadas no direito à cidadania, ao reconhecimento e ao respeito como sujeitos da história económica, política e cultural deste arquipélago.

A bravura das mulheres e o tempo das revoltas

Quando vejo a sociedade cabo-verdiana, sinto uma enorme angústia. Não obstante as pequenas contestações e as acentuadas rivalidades políticas e partidárias, podemos falar num sistema de consentimento e cumplicidade geral, perante as práticas de dominação e opressão reinantes, no arquipélago. De modo que, euzinha sinto muitas saudades do tempo das revoltas, aqui na ilha maior. Sinto algo assim tão profundo que não me importava dizer que também sou herdeira do espírito contestatário, badia rebelde, como queiram entender, e que me irrita mesmo o acto de emudecer.


Revolta de Ribeirão Manuel, 100 anos

As relações de dominação e exploração desencadearam várias revoltas sociais, no interior da ilha de Santiago, nomeadamente a Revolta dos Engenhos (1822), a Revolta de Achada Falcão (1841) e a Revolta de Ribeirão Manuel (1910). As mulheres participaram activamente nessas revoltas sociais. Entretanto, numa dessas revoltas campesinas, elas ocuparam o centro das atenções e agitações. Trata-se da Revolta de Ribeirão Manuel, no ano de 1910. Foram as condições deploráveis de subsistência que estiveram na origem da conhecida Revolta de Ribeirão Manuel.

Furto de purga! Tal foi a transgressão das campesinas, sem meios de sustento, provocando depois ferimentos num dos guardas que espancara uma delas, e desembocando tumultos na freguesia de Ribeirão Manuel e em diferentes povoados do concelho de Santa Catarina. Conta-se que, poucos dias após a Proclamação da República em Portugal, num ano de seca e péssima azágua em Cabo Verde, as mulheres decidiram enfrentar o extinto sistema de morgadio que, na prática, ainda vigorava. Aparecem envolvidos nessa revolta: o nome de Aníbal dos Reis Borges como provocador da revolta, em defesa da propriedade da sua irmã Ana dos Reis Borges que teria sido assaltada pelas mulheres populares desesperadas diante da penúria desse tempo; o nome do Padre António Duarte da Graça como defensor das mulheres e até como quem teria lhes aconselhado a protestarem; o nome do sargento Machado; o nome do Governador Marinha de Campos, que, logo após a sua apoteótica tomada de posse, na cidade da Praia, desembarcara no Porto de Ribeira da Barca, em direcção aos povoados de Santa Catarina, usando meios repressivos desproporcionais para calar a população revoltada; e o nome de Ana Veiga como protagonista da revolta, líder campesina, num momento em que a população rural marchara para a Prisão de Cruz Grande, onde as mulheres tinham sido feitas prisioneiras. A parte mais singela dessa narrativa popular é a que mostra a marcha de mulheres, homens e crianças contra o sistema de opressão e a favor da libertação das prisioneiras. Esta solidariedade é simplesmente singela e um marco na história agrária da ilha de Santiago!

A purga é semelhante às nozes verdes, colhida de um arbusto, que abundava na ilha de Santiago e noutras ilhas do arquipélago, como Fogo, Santo Antão e São Nicolau. Crescia livremente nos campos de sequeiro. Era especialmente utilizada na produção do «azeite de purga» para a iluminação caseira e do «sabão de terra», esta última feita a partir da cinza de purgueira. Nas primeiras décadas do século XIX, iniciara a exportação das sementes de purgueira para as indústrias europeias de saboaria. Isto impulsionara a plantação de purgueira. Até à década de sessenta do século XX, as suas sementes eram o principal produto de exportação das ilhas de Cabo Verde, conforme realça António Carreira, em Estudos de Economia Cabo-verdiana. Embora não existisse monopólio formal, nem privilégios de pessoas singulares ou colectivas, ao povo sobrava apenas o apanho da purga. Tal actividade era reservada a menores e mulheres, sendo que a falta de engenho para a moagem da purga implicava que as mulheres se encarregassem disso, moendo em pilão.

A bravura das mulheres do tempo das revoltas, incluindo a da Ribeirão Manuel, é o simbolismo indefectível das qualidades sublimes das mulheres do meu chão. E a todas elas aqui deixo o meu reconhecimento...

 
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