Quando vejo a sociedade cabo-verdiana, sinto uma enorme angústia. Não obstante as pequenas contestações e as acentuadas rivalidades políticas e partidárias, podemos falar num sistema de consentimento e cumplicidade geral, perante as práticas de dominação e opressão reinantes, no arquipélago. De modo que, euzinha sinto muitas saudades do tempo das revoltas, aqui na ilha maior. Sinto algo assim tão profundo que não me importava dizer que também sou herdeira do espírito contestatário, badia rebelde, como queiram entender, e que me irrita mesmo o acto de emudecer.
Revolta de Ribeirão Manuel, 100 anos
As relações de dominação e exploração desencadearam várias revoltas sociais, no interior da ilha de Santiago, nomeadamente a Revolta dos Engenhos (1822), a Revolta de Achada Falcão (1841) e a Revolta de Ribeirão Manuel (1910). As mulheres participaram activamente nessas revoltas sociais. Entretanto, numa dessas revoltas campesinas, elas ocuparam o centro das atenções e agitações. Trata-se da Revolta de Ribeirão Manuel, no ano de 1910. Foram as condições deploráveis de subsistência que estiveram na origem da conhecida Revolta de Ribeirão Manuel.
Furto de purga! Tal foi a transgressão das campesinas, sem meios de sustento, provocando depois ferimentos num dos guardas que espancara uma delas, e desembocando tumultos na freguesia de Ribeirão Manuel e em diferentes povoados do concelho de Santa Catarina. Conta-se que, poucos dias após a Proclamação da República em Portugal, num ano de seca e péssima azágua em Cabo Verde, as mulheres decidiram enfrentar o extinto sistema de morgadio que, na prática, ainda vigorava. Aparecem envolvidos nessa revolta: o nome de Aníbal dos Reis Borges como provocador da revolta, em defesa da propriedade da sua irmã Ana dos Reis Borges que teria sido assaltada pelas mulheres populares desesperadas diante da penúria desse tempo; o nome do Padre António Duarte da Graça como defensor das mulheres e até como quem teria lhes aconselhado a protestarem; o nome do sargento Machado; o nome do Governador Marinha de Campos, que, logo após a sua apoteótica tomada de posse, na cidade da Praia, desembarcara no Porto de Ribeira da Barca, em direcção aos povoados de Santa Catarina, usando meios repressivos desproporcionais para calar a população revoltada; e o nome de Ana Veiga como protagonista da revolta, líder campesina, num momento em que a população rural marchara para a Prisão de Cruz Grande, onde as mulheres tinham sido feitas prisioneiras. A parte mais singela dessa narrativa popular é a que mostra a marcha de mulheres, homens e crianças contra o sistema de opressão e a favor da libertação das prisioneiras. Esta solidariedade é simplesmente singela e um marco na história agrária da ilha de Santiago!
A purga é semelhante às nozes verdes, colhida de um arbusto, que abundava na ilha de Santiago e noutras ilhas do arquipélago, como Fogo, Santo Antão e São Nicolau. Crescia livremente nos campos de sequeiro. Era especialmente utilizada na produção do «azeite de purga» para a iluminação caseira e do «sabão de terra», esta última feita a partir da cinza de purgueira. Nas primeiras décadas do século XIX, iniciara a exportação das sementes de purgueira para as indústrias europeias de saboaria. Isto impulsionara a plantação de purgueira. Até à década de sessenta do século XX, as suas sementes eram o principal produto de exportação das ilhas de Cabo Verde, conforme realça António Carreira, em Estudos de Economia Cabo-verdiana. Embora não existisse monopólio formal, nem privilégios de pessoas singulares ou colectivas, ao povo sobrava apenas o apanho da purga. Tal actividade era reservada a menores e mulheres, sendo que a falta de engenho para a moagem da purga implicava que as mulheres se encarregassem disso, moendo em pilão.
A bravura das mulheres do tempo das revoltas, incluindo a da Ribeirão Manuel, é o simbolismo indefectível das qualidades sublimes das mulheres do meu chão. E a todas elas aqui deixo o meu reconhecimento...