CARA EILEEN (II)

Queria começar esta carta da seguinte forma: “Calheta, aos 30 de Novembro…”. De repente, apercebi-me de que estou em Coimbra e apaguei o que tinha já registado. Então, voltei à vida virtual para responder as tuas questões. Antes disso, vou tentar analisar o debate fomentado por sete blogs: Albatrozberdiano, Filinto Elísio; Pedrabika, Amílcar Aristides; Soncent, Eileen Barbosa; Son di Santiagu, Djinho Barbosa; Ala Marginal, Abrãao Vicente; So pa Fla, Chissana Magalhães; Igualdade na Diferença, Eurídice Monteiro.

(Albatrozberdiano, Filinto Elísio) Num post sobre a problemática do bilinguismo (18/08/2007), intitulado “O bilinguismo nosso de cada dia”, Filinto Elísio refere à necessidade de tradução para crioulo cabo-verdiano tanto da Bíblia, como também da Constituição Nacional. Ressalta a necessidade desta língua ser usada também nas situações de comunicação formais, como nas cerimónias religiosas e nas próprias instituições públicas (a Assembleia Nacional, os Tribunais, os Hospitais, as Escolas...). Ainda refere à necessidade da introdução do crioulo cabo-verdiano nos anúncios durante os voos da TACV, juntando assim ao inglês, francês e português. Numa melodia pessoana, Filinto Elísio afirma: “a minha pátria é a língua cabo-verdiana”. Contudo, não deixa de exaltar a língua portuguesa como a sua segunda natureza. Assim, defende a oficialização do crioulo, em prol da construção progressiva de um real bilinguismo, dando especial atenção ao papel central do Estado no que concerne à política linguística. Reforça o papel do português enquanto um recurso estratégico fundamental para o desenvolvimento e a inserção neste mundo globalizado. Neste post, importa realçar a problemática da marginalização do crioulo cabo-verdiano sobretudo no seio da “pequena elite intelectual” e da padronização linguística no que se refere ao domínio da escrita.

(Igualdade na Diferença, Eurídice Monteiro) Numa análise sobre a problemática linguística (19/08/2007), intitulado “A(s) Língua(s)”, tento realçar a diferença “portuguística” no espaço da CPLP. Lembrando do post no Albatrozberdiano sobre o bilinguismo no contexto cabo-verdiano, não deixo de reconhecer que o debate sobre a(s) língua(s) merece ser aflorado e levado a sério pelos responsáveis directos no processo de afirmação do crioulo cabo-verdiano. Para além disso, tento ressaltar duas questões. Por um lado, a questão da geopolítica da língua, referindo à questão do alfabeto unificado no quadro da “dita” CPLP e alertando para a necessidade de ter em atenção os jogos de poder(es) neste espaço em que o português nos (des)une. Por outro, o fenómeno da globalização, afirmando que, ao mesmo tempo que o uso do inglês se intensifica à escala global, faz todo sentido a afirmação da língua cabo-verdiana, sendo que aceitar que é inútil o investimento na língua cabo-verdiana significa “sacrificar a diferença em nome de um princípio de assimilação”. Por fim, frisei o direito e o dever do povo berdiano no sentido da valorização do crioulo cabo-verdiano, não só enquanto elemento cultural, mas também como veículo de produção de conhecimentos, mesmo que sejam (ou sobretudo porque são) os conhecimentos “catalogados” como tradicionais.

As minhas considerações suscitaram alguma discussão, reunindo vinte cibercomentários. Em termos gerais, importa ressaltar duas questões problematizadas ao longo da discussão. Em primeiro lugar, a língua enquanto elemento identitário. Em segundo lugar (e mais problemática), a questão da oficialização, chamando a atenção para a falta de paciência relativamente ao próprio processo e aceitando que o crioulo cabo-verdiano ainda não encontra-se preparado para ser uma língua oficial, tendo sido ressaltado a problemática da escrita.

(Pedrabika, Amílcar Aristides) Tendo tido uma participação activa no meu post sobre “A(s) língua(s)”, Amílcar Aristides (5/10/2007) lança o debate no seu blog, que suscitou comentários no sentido da valorização das diferentes variantes do crioulo cabo-verdiano. Uma questão importante realçada prende-se com o reconhecimento do simbolismo cultural e das práticas sociais associadas às diferentes variantes.

(Soncent, Eileen Barbosa) “Em badio é que nos entendemos?” Com esta interrogação começas o teu post (23/11/2007), gerando polémicas na blogesfera berdiana. Contas que ficaste surpreendida ao ouvir as boas vindas de uma assistente de bordo, primeiramente, na variante de Santiago e, depois, em Português, Francês e Inglês. Tendo perguntado a uma das assistentes acerca desta novidade, ficaste a saber que, até Janeiro, o crioulo cabo-verdiano vai ser introduzido em todos os voos daquela companhia.

Do teu post e dos quarenta comentários que suscitou, surgem um conjunto de questões que, embora não sendo inéditas, não deixam de ser preocupantes: 1) a problemática da oficialização do crioulo; 2) a “guerrilha linguística” entre a variante de Santiago e a variante de São Vicente (mais do que isso, entre “badiu” e “sampadjudu”); 3) a influência do português nas diferentes variantes do crioulo cabo-verdiano; 4) o português como língua que une (ou cria zonas de contacto/entendimento) entre @s cabo-verdian@s; 5) a mudança de posição na hierarquia linguística com a oficialização do crioulo cabo-verdiano.

Para além dessas questões, não posso deixar de fazer referência a duas passagens no teu post: “(…) di fora”; “eu até acho o Badio uma língua bonita (…)”. Podemos pensar também nos não ditos implícitos no teu post. Acredito que tenha sido apenas um descuido da tua parte, que, nem sequer, imaginavas que ias acordar os fantasmas da cabo-verdianidade que encontram-se atrás das marcaras da nossa modernidade forjada. Portanto, tocaste na velha ferida (sempre aberta, mas politicamente silenciada), acabando assim por suscitar tamanha polémica.

(Son di Santiagu, Djinho Barbosa) Num post intitulado “O post da Eileen é NORMAL?” (26/11/2007), Djinho Barbosa sugere uma análise crítica do discurso do teu post, sublinhando as partes mais problemáticas. Para além disso, Djinho Barbosa chama a atenção para o lado depreciativo associado ao “badiu”.

(Ala Marginal, Abrãao Vicente) No seu post (28/11/2007), Abrãao Vicente começa por abordar as discussões acerca de “badiu” e “sampadjudos” e os preconceitos que foram sendo enraizados na nossa cultura, com marcas bairristicamente traçadas. Ultrapassando a mera questão linguística, Abrãao Vicente belisca os pressupostos básicos escondidos atrás de um simples debate sobre a problemática linguística, remetendo para a própria problemática da construção identitária no nosso espaço insular.

(So pa Fla, Chissana Magalhães) Chissana Magalhães (28/11/2007) introduz na discussão a distinção entre língua e dialecto, que sistematicamente tem sido referido no âmbito dos debates sobre a problemática linguística sobretudo nas antigas colónias. Ainda realça a diferença que existe no interior da variante de Santiago, bem como as diversas formas de subalternização d@s falantes “di fora”. Para além disso, ressalta o esforço da malta berdiana no que se refere a outras línguas, questão que eu também tentei deixar clara na primeira carta que te escrevi.

[Irmandade Crioula!?...] Tive que recorrer ao debate que encontra-se aberto nos blogs berdianos, porque não podemos ignorar as suas implicações. E, agora, sem rodeio, aproveito para dizer-te que, o escândalo das tuas palavras prende-se com o facto de a Eileen ser uma jovem aberta e esclarecida, que acompanha as mutações da nossa contemporaneidade. No meu entender, devias fazer uma auto-reflexividade acerca do teu post e, por conseguinte, apresentar um pedido de desculpas por ter ferido a susceptibilidade de muit@s leitor@s do teu blog, nomeadamente por causa da seguinte afirmação: “achei mais piada que outra coisa”. Um pedido de desculpas evidenciará a tua maturidade e o respeito para com as nossas diferenças internas, sem comprometer a tua liberdade de expressão.

Bom fim-de-semana!
Eury

QUERIDA EILEEN (I)

Na nossa última conversa instantânea no messenger, tu estavas na Irlanda, desafiando o frio gélido e aquecendo a tua alma com poemas rabiscados por ti directamente na língua inglesa. Gostei deveras daquele poema ("Keep low profile"), especialmente dos últimos versos que quase sinto deslizar nos meus lábios como o meu gloss da Clinique: “Don’t you stare/ Put down your chin/ Don’t show pride/ When you need to hide”.

Enquanto conversava contigo, eu fazia um esforço tremendo para ignorar as lembranças que, teimosamente, persistiam em cada objecto na minha escrivaninha. Por mais que tentava fugir dessas lembranças, algo mais forte me trazia mensagens de momentos registados num pergaminho ou apenas ecoados no chão vermelho do meu coração doentio de tantas saudades. Quando virava para o Norte, pensava no Nikolai e sentia das Parfüm des Schnees. Scheisse! Ainda sinto a suavidade dos fios loiros do Nikos e a inquietação das duas lanterninhas verdazuis deste menino de Berlim. Quando contornava para o Sul, aparecía la imagen del cabrón de Carlos con sus historias de los indígenas de Chiapas. Ainda encravada no Sul, recordava das conversas de horas perdidas com a Eliana e até sentia o meu corpo mexer de tanto pensar na galera do samba. Lembro-me como se fosse ontem da feijoada brasileira feita pela Alene, da caipirinha da Mary, do caldo de mancarra do Julião, do frango de caril do André, dos jantares multiculturais no Casarão e da poesia em diversas línguas e sotaques que mais não eram do que uma forma rebelde de projecção da diversidade de povos e culturas que habitam no meu oceano tempestuoso.

Lembro-me que, quando comecei a conversar contigo, eu tinha acabado uma conversa com a Shahd. No dia anterior, durante um seminário do Grupo de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a linguista Clara Keating tinha ficado maravilhada ao perceber que estava perante um grupo marcado pela diversidade linguística: a Shahd tinha trazido o Árabe; a Oriana o francês; eu o crioulo cabo-verdiano (variante de Santiago); as portugas Salomé, Ana Paula, Alexandra, Cristina, Teresa, Dina, Marta, Filipa e Olga acentuavam de modo distinto na língua lusa. Éramos doze jovens numa tarde de Outono poeirento, partilhando as nossas experiências linguísticas. A maestrina da tuna poliglota tentava insistentemente saber mais e mais sobre as nossas vadiagens no reino das palavras. Apesar da ditadura mundial do inglês, tentávamos expressar noutras línguas, que transportavam a nossa própria identidade. Mesmo entre as jovens que tinham uma relação de proximidade com o português, era visível a diferença “portuguística”.

Ontem, após uma visita mais demorada aos blogs berdianos, apercebi-me que, no contexto cabo-verdiano, o debate sobre a problemática linguística merece ser mais incitado, sendo necessário estimular diálogos entre as diferentes variantes do crioulo cabo-verdiano. Digo-te que fiquei surpreendida pela forma como abordaste a variante de Santiago. Não esperava essa atitude da tua parte, sobretudo porque percebo que tens uma mentalidade aberta e a capacidade para compreender (se assim o quiseres) as mensagens de falantes que não se expressam na variante de São Vicente.

Antes de sair para estudar em Coimbra, tive a oportunidade de participar em digressões e encontros juvenis no nosso país. Convivi com jovens das nove ilhas habitadas do nosso arquipélago e fiz amizades que arrastaram no tempo. Mas a minha relação mais calorosa com gentes de outras ilhas começou quando estacionei nesta cidade distante. Aqui apercebi-me que, por mais que estivesse longe da minha terra e da minha família, tenho sempre um ombro berdiano onde posso me encostar quando a saudade aperta. Com vontade de compreender e de ser compreendida, fui-me familiarizando com as diferentes variantes do crioulo cabo-verdiano. Claro, nem sempre compreendo expressões próprias de determinadas ilhas ou localidades. Nunca senti receio de dizer que não faço ideia do que significa determinada palavra, nem de perguntar como devia dizer certas coisas numa variante diferente da minha. Podia passar horas aqui a falar-te da minha convivência no reino linguístico berdiano. Mas prefiro deixar-te com um belíssimo poema da poetisa guineense Odete Semedo.


Em que língua escrever

Em que língua escrever
Contando os feitos das mulheres
E dos homens do meu chão?
Como falar dos velhos
Das passadas e cantigas?
Falarei em crioulo?
Falarei em crioulo!
Mas que sinais deixar
Aos netos deste século?

Ou terei que falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século
Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem
(...)

Deixarei recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
(...)

Odete Semedo

Beijinhos,
Eury

25 DE NOVEMBRO


Hoje, Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, não podia deixar de pensar sobre as várias formas de violência (física, sexual e psicológica) que atingem a camada feminina.

Aproveito para fazer um apelo a tod@s no sentido de reflectirem sobre esta problemática no nosso quotidiano...

O FAZEDOR DE UTOPIAS


Hoje, pelas 18:30mn, a Casa Fernando Pessoa vai acolher o lançamento de O Fazedor de Utopias: Uma Biografia de Amílcar Cabral, da autoria do jornalista e escritor angolano António Tomás. A apresentação vai estar a cargo do escritor (também angolano) José Eduardo Agualusa.

Amílcar Cabral nasceu a 12 de Setembro de 1924, na actual Guiné-Bissau, sendo filho de pais cabo-verdianos. Em 1956, fundou o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Quase no fim da luta por ele engendrada, a 20 de Janeiro de 1973, foi assassinado numa noite ainda muito mal contada. Este biografado foi um homem do seu tempo, que conseguiu lançar utopias para além do seu tempo, tendo sido um acérrimo defensor da dignidade humana.

A TI, MULHER!

A ti
Que no teu seio
Recolheste e fecundaste
O gérmen do meu ser
E regaste
O meu corpo
Com o sangue
Das tuas veias

[...]

A ti
Parceira
Certa e quente
Dos meus ardentes
Momentos
Eva sensual
Dos meus
Libidinosos sonhos
E esquivas aventuras

A ti
Mulher
Escrava liberta
Amazona indomável
Da nossa luta

A ti
Mulher
De balaio à cabeça
Enxada ao ombro
Espingarda em punho
Ou livro aberto

A ti
Mulher
De menino às costas
Soprando lume
Ou cochindo milho
Nas ladeiras
Catando lenha
Ou ao sol do meio-dia
Construindo diques
E abrindo estradas
No hospital curando
Ou na escola ensinando
Soldado
Em todas as frentes
participando

A ti
mulher

A ti
Fonga
Munana
Titina
Naia
Muntura
Nhamina

A ti
Mulher
De Chã de Tanque
Rabil
Cova Figueira

Monte-Sossego
Coculi
Nossa Senhora do Monte
Pedra de Lume
Morro
Carriçal

A ti
Mulher de Cabo Verde

A ti
Mulher-mãe
Mulher-filha

A ti
Mulher-esposa
Mulher-amante
Mulher-amada
Mulher-amor

A ti
Minha irmã
Camarada
Amiga
Companheira
Parceira

A ti
Mulher

A ti
Um Verso
Um Poema
Um Hino

A ti
Sempre uma Homenagem!


D.H.A. (26/08/1984)

Filha do Mar

Quando nasci, no dia primeiro da segunda metade de um jucundo Novembro, a minha pequena aldeia parecia serena. A vizinhança escutava a dor da mãezinha, segurada pelo enfermeiro confiante, que recusou chamar a parteira.

A Afrodite preparava-se para pousar no silêncio da noite, acompanhada pela melodia das ondas, que lambiam a areia negra sonolenta. Porém, um manto largo castanho-avermelhado estendia-se no céu, desde o cimo de Monte Serrado. As lágrimas dos deuses e das ninfas começavam a cair. Até pareciam conduzir Orfeu às profundezas do Hades para resgatar a Eurídice.

Algures entre as montanhas e os vales, no momento em que a povoação se preparava para embalar na mansidão da noite, entoei o meu primeiro grito. Emprestaram-me o nome da bela ninfa auloníade, reencarnando subitamente um amor eterno. Para o meu desassossego, semearam o meu cordão umbilical no mar e traçaram o meu destino com o primeiro relâmpago.

...

Já agora, parabéns para a Ana Preste lá no Brasil e para a minha prima Larissa em Cabo Verde, que também fazem anos hoje… E para tod@s outr@s amig@s que (re)nasceram no mês de Novembro, em especial: Elinha, António CeS, Evy e Shely (14 de Nov); Carla Sofia, BSS e Miriam Elizabeth (15 de Nov); Diva (17 de Nov), etc. Ainda um especial abraço a outr@s novembristas: Sara Araújo, que se encontra numa fase de pesquisa empírica em Moçambique; Ondjaki, pelo Há Prendisajens com o Xão, que escolhi para “chãonhe-ser-me”.

PARABÉNS AO MESTRE

Nasceu no dia quinze de Novembro, do ano de mil novecentos e quarenta, em Coimbra. Hoje, é conhecido como sociólogo, professor universitário (professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e professor convidado na Universidade de Wisconsin-Madison), poeta e activista. Através do Centro de Estudos Sociais por ele dirigido, tem vindo a se afirmar como um dos principais intelectuais da área de Ciências Sociais, com mérito internacionalmente reconhecido.

Deixo aqui neste esconderijo, um especial abraço ao meu amável professor e orientador BSS (Boaventura de Sousa Santos), cujo trabalho representa uma forte influência na minha vida académica e pessoal. Mais uma vez, aquele agradecimento por tudo o que com ele tenho vindo a aprender e a (re)descobrir.

SUJEITOS ACTIVOS


No dia 16 de Novembro, pelas 18:30 mn, no Hotel Trópico (Praia, Cabo Verde), será apresentado o livro Género e Migrações Cabo-verdianas, organizado pelas investigadoras: Marzia Grassi (Economista do Desenvolvimento, Investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e autora de Rabidantes: Comércio Espontâneo Transnacional em Cabo Verde) e Iolanda Évora (Psicóloga Social e Investigadora do Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa).

Nesta colectânea, composta por textos de um conjunto de especialistas internacionais sobre as migrações contemporâneas, a diáspora cabo-verdiana é analisada numa “perspectiva de género”, frisando a trajectória migratória do povo das ilhas. Como realçam as organizadoras desta coletânea, a pertinência do “género” na compreensão da cultura cabo-verdiana prende-se grandemente com a posição que as mulheres assumem na estrutura familiar da nossa sociedade, que lhes atribuem a responsabilidade para o sustento e a reprodução do agregado, sendo que as mulheres migrantes levam consigo esta responsabilidade para as sociedades de acolhimento. Nos diversos estudos de caso incluidos nesta coletânea, as mulheres são vistas como sujeitos activos, que adoptam diferentes estratégias de integração na diáspora cabo-verdiana.

A apresentação estará a cargo do Doutor Gabriel Fernandes (especialista em Sociologia Política e autor de A diluição da África: Uma Interpretação da Saga Identitária Cabo-verdiana no Panorama Político (Pós)colonial e de Em Busca da Nação: Notas para uma Reinterpretação do Cabo Verde Crioulo).


Organização da Colectânea

Introdução
Marzia Grassi e Iolanda Évora

Capítulo 1
Cabo Verde pelo Mundo:
o género na diáspora cabo-verdiana
Marzia Grassi

Capítulo 2
«Minha gente, minha terra»:
as atribuições sociais do papel de emigrante
Iolanda Évora

Capítulo 3
Badiu na Galiza:
mar di homi, tera di mudjeres
Luzia Oca Gonzaléz

Capítulo 4
As mães e os seus filhos dentro da plasticidade parental:
reconsiderando o patriarcado na teoria e na práica
Isabel Fêo Rodrigues

Capítulo 5
Nem homens, nem mulheres, só contratados.
Apontamentos sobre relações de género entre cabo-verdianos
nas roças de São Tomé e Príncipe
Augusto Nascimento

Capítulo 6
Tão longe e tão perto.
Emigração feminina e organização familiar:
Boa Vista (Cabo Verde)
Andréia de Souza Lobo

Capítulo 7
Mulheres que ficam e mulheres que migram:
dinâmicas duma relação complexa na ilha
de Santo Antão (Cabo Verde)
Martina Giuffrè

Capítulo 8
O papel da independência, da emigração e da World Music
na ascenção ao estrelato das mulheres de Cabo Verde
JoAnne Hoffman

AZÁGUA


A sementeira era uma actividade presente na vida da população boka-portuense. Os mais-velhos e as mais-velhas acreditavam que havia de chover, dando milho em abundância para que o país não voltasse a padecer de fome. Sabiam como o país dependia do milho semeado. Por isso, aguardavam com ansiedade a vinda da chuva e alegravam-se quando ouviam notícias de terra molhada nos arredores da Serra de Malagueta.

Os mais-jovens e as mais-jovens (menos crentes!) não depositavam esperança na chuva, nem tinham memória dos tempos famintos vividos nas nossas ilhas. Pronto, havia o Dota com as suas estórias sobre a fome de ´47. O Dota contava que ele resistiu à fome por causa de três grãos de milho cozidos em cinza quente. As suas mãos até tremiam, quando ele relatava as suas memórias de (sobre)vivência.

BOKA-PORTU (registos quase-esquecidos)

(Coimbra, 7 de Novembro de 2007)

Hoje, acordei com uma sensação esquisita. Não sabia se eram os excessos de saudades, ou se eram apenas os efeitos das noites mal dormidas. Quando me levantei da caminha, sintonizei a RDP-África. O meu diário cor-de-rosa continuava aberto, na mesma página que deixei antes de adormecer. Estiquei o meu braço esquerdo e apanhei-o para (re)ler os registos sobre a minha infância-juventude na pequena aldeia onde nasci.

Apetecia-me reescrever algumas linhas sobre a Calheta da minha infância. Como devia recomeçar? Era uma vez... Assim, não me agradava! Pensando um pouco na forma como devia reescrever os registos do meu diário, acabei por decidir que o processo de reescrita seria mais elaborado se eu estivesse sentada na praça do Porto, com a cara virada para o mar. Comecei a rever as gentes, a sentir a brisa do mar, a dançar na areia... Lembrei-me de que...

Calheta ficou conhecida pelo seu Porto, registando as estórias dos barcos que passavam no alto mar e de alguns que se encalhavam na baía rasa. O mar fazia parte da vida das pessoas deste pequeno povoado. Até houve canções de homens aclamando para que a água do mar se transformasse em singuelu (desculpem o anacronismo!), com a intenção de se transformarem em peixes. Em vez de um copinho aqui e um copinho ali, os homens preferiam mergulhar no fundo do mar para verem sereias.

Ao registar estas linhas, lembrei-me da canção do Gil d’Jóia: “si agu-mar bira grogu, ma Gil d’Jóia ta bira pexi”. O nho Donda preferia as anedotas, os provérbios e os pensamentos marotos: “raxa, cosi; duspi, deta (!)”. Já o Biaricá não era para brincadeiras, atirava palavrões sempre que se atropelava na sua muleta. Ninguém esquece esse coxo que se conseguiu aguentar firme até aos 110 anos. Deve ter comido muita katchupa. Acho que sim!...

Na sua lancha e a remar, os pescadores iam ao mar. Sozinhos ou acompanhados, iam buscar peixes para o sustento da sua família. Muitas vezes, voltavam com a lancha vazia, mas não desistiam de ser pescadores. Consolavam as suas tristezas com um groguinho e partilhavam as suas angústias com os homens que desciam à boka-portu. Também não havia muitas alternativas. As alternativas mais palpáveis eram a agricultura e a pastorícia. Como chovia pouco, mesmo essas alternativas não eram bem vistas pelos pescadores. Un linguadu o un bidion animava qualquer pescador. Dava para fazer un caldu-pexi o da gostu na katchupa e a família confortava-se com o pouco que havia. Ás vezes, o facto de encontrar a isca para a próxima pesca era motivo para animar os pescadores. O Cabiote conhecia a vida-no-mar melhor do que ninguém. Ele sabia como era difícil voltar de mãos vazias, vendo a Nhambina a soprar o lume e não sabendo o que dizer para plantar um sorriso na cara da esposa...

Os pescadores conseguiam perceber o estado do tempo através do som das ondas. Então, quando pensavam que o tempo não ia ser bom, preferiam ficar em casa. Alguns iam ajudar a esposa na sementeira ou a resolver alguns problemas domésticos. Outros preferiam ir ao Porto para jogar conversa-fora.

No Porto morava a elite da época, voltada para o comércio. Então, os pescadores sentavam na praça à sombra das tamareiras, depois de beberem na loja do Sr. Olímpio ou do Sr. Vicente Luciano. No pelourinho, encontravam sempre algum bafiu. Falando no Porto, não podia deixar de referir ao sobrado do Sr. Velhinho. Este sobrado guardava muitos mistérios do Porto. Hoje, ninguém comenta, mas suponho que está assombrado! Nas minhas brincadeiras de infância, nunca tive a coragem de me esconder nos quartos escuros deste sobrado quase abandonado...

Quando havia temporal, seguido de chuva, se houvesse pescadores no alto mar, a população ficava preocupada. Não sei se sabem, mas na Calheta chuva era mesmo só no mar. Lembro-me do Cabiote a regressar do mar com a cara preocupada, anunciando que chovia no mar... Todos os anos, a população boka-portuense lamentava a falta de chuva: “boka-portu ka ta txobi”. Só de quando em vez, chovia para o desespero dos pescadores, que tinham de adiar a ida ao mar; também para a despesa das peixeiras, pois tinham que ir ao Tarafal ou à Santa Cruz comprar peixes para venderem. Os agricultores enchiam-se de esperança, embora se desiludissem com o tardar do regresso da chuva. Para as criancinhas, a vinda da chuva era uma maravilha: tomavam banho-de-chuva, aproveitando para jogar à apanhada e outros jogos. Quando o campo se cobria de verde, os miúdos/jovens pastores começavam a desfilar com o seu rebanho...

CLARA SPENCER


Clara Spencer acabou de regressar de Cabo Verde, após cinco meses de pesquisa empírica sobre o programa de luta contra a pobreza a nível comunitário (na ilha de São Nicolau). Esta temática tem ocupado o centro da atenção desta jovem investigadora cabo-verdiana, que se encontra a preparar a sua Dissertação de Mestrado em Sociologia, aqui na Universidade de Coimbra.

Hoje, fui lanchar na casa da Clarinha, que trouxe coisas da terra para adocicar a minha imaginação. Eu, a Clarinha, a Eloisa (de São Nicolau) e a Joana (de Santo Antão) passamos o final da tarde a jogar conversa fora sobre o nosso país. Com o cair da noite, fomos espreitar as fotografias que a Clarinha conseguiu sacar durante o seu trabalho etnográfico. Os gestos, o sorriso e a musicalidade, perceptível em cada fotografia, (re)desenhavam na minha face a terrível saudade e uma vontade enorme de regressar à casa.

Parece que os dias não passam. Tudo na minha frente mais não é do que uma neblina ardilosa. Esta cidade não é minha. Este lugar não me pertence. Conto os dias que me faltam para dormir na minha cama, mergulhar os meus pés na areia da minha ilha imaginada, ver o Porto da minha varanda, abraçar as minhas gentes, etc. São apenas as saudades, a eterna dor do povo das ilhas...

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Laundry Detergent Coupons