(Coimbra, 7 de Novembro de 2007)
Hoje, acordei com uma sensação esquisita. Não sabia se eram os excessos de saudades, ou se eram apenas os efeitos das noites mal dormidas. Quando me levantei da caminha, sintonizei a RDP-África. O meu diário cor-de-rosa continuava aberto, na mesma página que deixei antes de adormecer. Estiquei o meu braço esquerdo e apanhei-o para (re)ler os registos sobre a minha infância-juventude na pequena aldeia onde nasci.
Apetecia-me reescrever algumas linhas sobre a Calheta da minha infância. Como devia recomeçar? Era uma vez... Assim, não me agradava! Pensando um pouco na forma como devia reescrever os registos do meu diário, acabei por decidir que o processo de reescrita seria mais elaborado se eu estivesse sentada na praça do Porto, com a cara virada para o mar. Comecei a rever as gentes, a sentir a brisa do mar, a dançar na areia... Lembrei-me de que...
Calheta ficou conhecida pelo seu Porto, registando as estórias dos barcos que passavam no alto mar e de alguns que se encalhavam na baía rasa. O mar fazia parte da vida das pessoas deste pequeno povoado. Até houve canções de homens aclamando para que a água do mar se transformasse em singuelu (desculpem o anacronismo!), com a intenção de se transformarem em peixes. Em vez de um copinho aqui e um copinho ali, os homens preferiam mergulhar no fundo do mar para verem sereias.
Ao registar estas linhas, lembrei-me da canção do Gil d’Jóia: “si agu-mar bira grogu, ma Gil d’Jóia ta bira pexi”. O nho Donda preferia as anedotas, os provérbios e os pensamentos marotos: “raxa, cosi; duspi, deta (!)”. Já o Biaricá não era para brincadeiras, atirava palavrões sempre que se atropelava na sua muleta. Ninguém esquece esse coxo que se conseguiu aguentar firme até aos 110 anos. Deve ter comido muita katchupa. Acho que sim!...
Na sua lancha e a remar, os pescadores iam ao mar. Sozinhos ou acompanhados, iam buscar peixes para o sustento da sua família. Muitas vezes, voltavam com a lancha vazia, mas não desistiam de ser pescadores. Consolavam as suas tristezas com um groguinho e partilhavam as suas angústias com os homens que desciam à boka-portu. Também não havia muitas alternativas. As alternativas mais palpáveis eram a agricultura e a pastorícia. Como chovia pouco, mesmo essas alternativas não eram bem vistas pelos pescadores. Un linguadu o un bidion animava qualquer pescador. Dava para fazer un caldu-pexi o da gostu na katchupa e a família confortava-se com o pouco que havia. Ás vezes, o facto de encontrar a isca para a próxima pesca era motivo para animar os pescadores. O Cabiote conhecia a vida-no-mar melhor do que ninguém. Ele sabia como era difícil voltar de mãos vazias, vendo a Nhambina a soprar o lume e não sabendo o que dizer para plantar um sorriso na cara da esposa...
Os pescadores conseguiam perceber o estado do tempo através do som das ondas. Então, quando pensavam que o tempo não ia ser bom, preferiam ficar em casa. Alguns iam ajudar a esposa na sementeira ou a resolver alguns problemas domésticos. Outros preferiam ir ao Porto para jogar conversa-fora.
No Porto morava a elite da época, voltada para o comércio. Então, os pescadores sentavam na praça à sombra das tamareiras, depois de beberem na loja do Sr. Olímpio ou do Sr. Vicente Luciano. No pelourinho, encontravam sempre algum bafiu. Falando no Porto, não podia deixar de referir ao sobrado do Sr. Velhinho. Este sobrado guardava muitos mistérios do Porto. Hoje, ninguém comenta, mas suponho que está assombrado! Nas minhas brincadeiras de infância, nunca tive a coragem de me esconder nos quartos escuros deste sobrado quase abandonado...
Quando havia temporal, seguido de chuva, se houvesse pescadores no alto mar, a população ficava preocupada. Não sei se sabem, mas na Calheta chuva era mesmo só no mar. Lembro-me do Cabiote a regressar do mar com a cara preocupada, anunciando que chovia no mar... Todos os anos, a população boka-portuense lamentava a falta de chuva: “boka-portu ka ta txobi”. Só de quando em vez, chovia para o desespero dos pescadores, que tinham de adiar a ida ao mar; também para a despesa das peixeiras, pois tinham que ir ao Tarafal ou à Santa Cruz comprar peixes para venderem. Os agricultores enchiam-se de esperança, embora se desiludissem com o tardar do regresso da chuva. Para as criancinhas, a vinda da chuva era uma maravilha: tomavam banho-de-chuva, aproveitando para jogar à apanhada e outros jogos. Quando o campo se cobria de verde, os miúdos/jovens pastores começavam a desfilar com o seu rebanho...