Na nossa última conversa instantânea no messenger, tu estavas na Irlanda, desafiando o frio gélido e aquecendo a tua alma com poemas rabiscados por ti directamente na língua inglesa. Gostei deveras daquele poema ("Keep low profile"), especialmente dos últimos versos que quase sinto deslizar nos meus lábios como o meu gloss da Clinique: “Don’t you stare/ Put down your chin/ Don’t show pride/ When you need to hide”.
Enquanto conversava contigo, eu fazia um esforço tremendo para ignorar as lembranças que, teimosamente, persistiam em cada objecto na minha escrivaninha. Por mais que tentava fugir dessas lembranças, algo mais forte me trazia mensagens de momentos registados num pergaminho ou apenas ecoados no chão vermelho do meu coração doentio de tantas saudades. Quando virava para o Norte, pensava no Nikolai e sentia das Parfüm des Schnees. Scheisse! Ainda sinto a suavidade dos fios loiros do Nikos e a inquietação das duas lanterninhas verdazuis deste menino de Berlim. Quando contornava para o Sul, aparecía la imagen del cabrón de Carlos con sus historias de los indígenas de Chiapas. Ainda encravada no Sul, recordava das conversas de horas perdidas com a Eliana e até sentia o meu corpo mexer de tanto pensar na galera do samba. Lembro-me como se fosse ontem da feijoada brasileira feita pela Alene, da caipirinha da Mary, do caldo de mancarra do Julião, do frango de caril do André, dos jantares multiculturais no Casarão e da poesia em diversas línguas e sotaques que mais não eram do que uma forma rebelde de projecção da diversidade de povos e culturas que habitam no meu oceano tempestuoso.
Lembro-me que, quando comecei a conversar contigo, eu tinha acabado uma conversa com a Shahd. No dia anterior, durante um seminário do Grupo de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a linguista Clara Keating tinha ficado maravilhada ao perceber que estava perante um grupo marcado pela diversidade linguística: a Shahd tinha trazido o Árabe; a Oriana o francês; eu o crioulo cabo-verdiano (variante de Santiago); as portugas Salomé, Ana Paula, Alexandra, Cristina, Teresa, Dina, Marta, Filipa e Olga acentuavam de modo distinto na língua lusa. Éramos doze jovens numa tarde de Outono poeirento, partilhando as nossas experiências linguísticas. A maestrina da tuna poliglota tentava insistentemente saber mais e mais sobre as nossas vadiagens no reino das palavras. Apesar da ditadura mundial do inglês, tentávamos expressar noutras línguas, que transportavam a nossa própria identidade. Mesmo entre as jovens que tinham uma relação de proximidade com o português, era visível a diferença “portuguística”.
Ontem, após uma visita mais demorada aos blogs berdianos, apercebi-me que, no contexto cabo-verdiano, o debate sobre a problemática linguística merece ser mais incitado, sendo necessário estimular diálogos entre as diferentes variantes do crioulo cabo-verdiano. Digo-te que fiquei surpreendida pela forma como abordaste a variante de Santiago. Não esperava essa atitude da tua parte, sobretudo porque percebo que tens uma mentalidade aberta e a capacidade para compreender (se assim o quiseres) as mensagens de falantes que não se expressam na variante de São Vicente.
Antes de sair para estudar em Coimbra, tive a oportunidade de participar em digressões e encontros juvenis no nosso país. Convivi com jovens das nove ilhas habitadas do nosso arquipélago e fiz amizades que arrastaram no tempo. Mas a minha relação mais calorosa com gentes de outras ilhas começou quando estacionei nesta cidade distante. Aqui apercebi-me que, por mais que estivesse longe da minha terra e da minha família, tenho sempre um ombro berdiano onde posso me encostar quando a saudade aperta. Com vontade de compreender e de ser compreendida, fui-me familiarizando com as diferentes variantes do crioulo cabo-verdiano. Claro, nem sempre compreendo expressões próprias de determinadas ilhas ou localidades. Nunca senti receio de dizer que não faço ideia do que significa determinada palavra, nem de perguntar como devia dizer certas coisas numa variante diferente da minha. Podia passar horas aqui a falar-te da minha convivência no reino linguístico berdiano. Mas prefiro deixar-te com um belíssimo poema da poetisa guineense Odete Semedo.
Em que língua escrever
Em que língua escrever
Contando os feitos das mulheres
E dos homens do meu chão?
Como falar dos velhos
Das passadas e cantigas?
Falarei em crioulo?
Falarei em crioulo!
Mas que sinais deixar
Aos netos deste século?
Ou terei que falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século
Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem
(...)
Deixarei recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
(...)
Odete Semedo
Beijinhos,
Eury