«África-bunda»
Existem
hoje vários estudos críticos em torno da
imagética europeia sobre os trópicos. Parafraseando a expressão
camoniana «pretidão de amor», e analisando a literatura, a fotografia ou a pintura,
por exemplo, alguns estudos ressaltam o olhar de homens europeus, como também
de africanos, sobre as mulheres negras, que, exaltando a sua beleza, “apesar”
do seu tom da pele (“é pretinha mas bonitinha”), não deixam de as reduzir a uma
vertente carnal, sem densidade psicológica. E é assim que a sensualidade, o
exotismo e o erotismo ganham centralidade numa certa imaginação literária,
fotográfica e pictórica. Vejamos alguns exemplos de ideias veiculadas a
propósito das «crioulas» de Cabo Verde.
Num
texto elogioso – para manifestar o seu encantamento com as ilhas, que considera
como sendo As Ilhas Afortunadas (1988)
da mitologia grega –, o inglês Basil Davidson defende que: “as ilhas onde se
encontravam as Hespérides só podiam ser as de Cabo Verde: em que outro lugar
destas águas se podem ver tão maravilhosas mulheres?”
No
mesmo tom laudatório e exaltador da «beleza crioula», o fotógrafo português
José A. Salvador, que acompanha o escritor caboverdiano Germano Almeida em Cabo Verde: Viagem pela História das Ilhas (2003),
declara: “Quando parti para esta viagem pelas ilhas de Cabo Verde levei um
bloco de notas, que na capa tinha a pomba de Picasso desenhada em 28-12-1961.
Picasso nunca foi a Cabo Verde, porque nada consta a este propósito na sua
biografia oficial, mas seria com certeza homem para se deixar seduzir pelo
arquipélago das mulheres mais bonitas da costa ocidental de África. Picasso,
tal como eu e o German, cada um a seu modo e instância, inclinou-se a admirar a
beleza feminina... e eu e o German, cada um de nós com intensidade e por razões
diversas, a amar Cabo Verde.”
Também no romance de viagem do francês
Jean-Yves Loude, Cabo Verde: Notas Atlânticas
(1999), o autor classifica a mulher citadina da ilha de São Vicente como «musa
crioula», retratando a “doçura de Mindelo” e a sedução da “miss perfumada”, i.e., a imaginada facilidade de os homens
encontrarem o amor em “Mindelo, terra de amores”.
Um autor anónimo brasileiro, no texto sobre “a
bunda”, explica que as mulheres de Cabo Verde “não
são negras como as vizinhas senegalesas, são marrons. Ou castanhas, como
preferem elas. E lindas. As cabo-verdianas são lindas. Uma espécie de Sônia
Braga bem queimada. Olhos claros como dos piratas bisavós. Uma porção de
Patrícia França. Fica difícil descrever a bunda das mulheres de Cabo Verde. Tem
que ver para crer. São Tomé não acreditaria em seus próprios olhos. Mas olhando
uma delas passar, você percebe que ela está no doce balanço a caminho do mar (do
Brasil). Um dia estava com um amigo português, o cineasta Paulo de Souza,
especialista em cinema africano, numa praça de Mindelo, a capital intelectual
do país e das bundas (a capital do país chama-se Praia, pode?). Eis que passa
na nossa frente uma bunda vestida com uma minissaia verde, justa. Justíssima.
Não tivemos dúvida. Seguimos a bunda por vários quarteirões, em homenageante
silêncio, até que ela entrou numa casa e nós voltamos para a praça sem a
necessidade de dizermos nenhuma palavra um para o outro. Era uma obra-prima da
natureza aquela menina. De noite, lá pelas duas da manhã, estou eu no meu hotel
a dormir e batem na porta. Era o Paulo que havia ido a uma boate. Estava
trêmulo, suado: - Vem, vem, lembra daquela bunda? Veste,
veste! Ela está na boate. A bunda está dançando na boate!”
Enfim,
o exotismo e o erotismo persistiram no tempo, bem
como a redução do feminino à carnalidade da bunda.
A tal capa
Com
alguma curiosidade, tenho acompanhado o debate por aí sobre a tal CAPA do
novíssimo romance A Herança da Chaxiraxi,
de Gualberto do Rosário, um alto
representante da Nação cabo-verdiana, que até já foi Primeiro Ministro. Realce-se
que, para além de empresário radicado na ilha do Sal, o homem também conhecido
pela polémica daqueles montes de dólares é agora presidente do Conselho
Directivo da Câmara de Turismo de Cabo Verde, num pequeno Estado que se diz de direito democrático, assente nos
valores da igualdade independentemente da diferença de género.
A
imagem da tal capa do romance e a ideia de ordem da contracapa corporizam os
pré-juízos redutores e sexistas, enraizados na memória colonial. Com efeito, a
pequena editora, publicando no mercado português, aproveitou-se do «mito do
amor luso-tropical» para delinear a sua estratégia de marketing: umas três
bundas morenas em pose sensual e um trecho com descrições sexuais de cortar a
respiração. Será que o autor não
poderia, utilizando as prerrogativas jusautorais, vetar a escolha da imagem da
capa e o teaser do excerto
transcrito? Não o tendo feito, tudo indica que anuiu na redução do seu romance
a um panfleto exortando as ilhas como um destino de turismo sexual e anunciando
a mulher caboverdiana como um mero objecto de prazer. Independentemente do enredo
deste romance cuja trama se desenrola num imaginado período pré-colonial, a
capa (tal como um cartaz de cinema softcore)
já se assume como um factor de atracção de leitores buscando o povoamento de um
imaginário erótico.
A um
alto representante da Nação que já exerceu os cargos executivos de maior
responsabilidade – no âmbito dos quais tinha forçosamente, por imperativos
constitucionais, de promover políticas de igualdade e de dignidade da mulher –
exigia-se certamente um comportamento nos antípodas daquele que revelou ao
(deixar) publicar a tal capa. Ainda abunda o estereótipo da «África-bunda».
Aquele excerto
“A dançarina entrou em
transe e começou a libertar-se. Primeiro, das luvas. Depois, do vestido. Soltou
as peças de roupa, uma a uma, até ficar completamente nua. E se confundiu
absolutamente com o ritmo, a cor e o perfume que tomou conta do ar. Até cair em
meus braços, com o serenar da música. Amámo-nos. Como nunca o fizéramos. Sem
qualquer pressa. Exploramos cada poro dos nossos corpos. Experimentamos todas
as intimidades. Utilizamos todos os nossos sentidos. E fizemos todas as
rotações possíveis. Tudo com enorme delicadeza. Obedecendo à mais perfeita
harmonia e devoção. Como que respeitando a um ritual. Tântrico. A rumba
continuou a rodar, recriada pelo corpo e pela alma da Odete. Dessa vez
acompanhei. Me perdi nos acordes e na batida dos instrumentos. Até à completa
fusão. A Odete e eu. A música e o ritmo. Transfigurámo-nos numa estrela.
Tornámo-nos no Sol, que subiu até ao zénite e inundou tudo com a mais intensa
luz. A seguir, declinou e se escondeu nas águas dos nossos oceanos serenos,
deixando atrás um céu glorioso, de intensa cor laranja.”