Máxima di Guida, uma mulher-rural

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Tudo indica que nasceu na pequena aldeia à beira mar. Ali cresceu, e fez-se mulher. Mãe de um rapaz e de duas raparigas, que educou e sustentou sozinha aos olhos de toda a população da aldeia. Dos estudos, não tirou grande proveito. Por isso, cedo inventou mil alternativas para a sobrevivência do seu agregado familiar. Passou pelas Frentes de Alta Intensidade de Mão-de-Obra, com as suas anedotas e gargalhadas contagiantes; especializou‑se em fresquinhas e gelados caseiros, cobrindo, ainda hoje, com essa actividade, uma parte das suas despesas mensais. Aventurou-se pelo mundo do batuque, até se destacou em festivais e campanhas eleitorais lá na aldeia. Com os seus esforços, conquistou um emprego nos serviços dos registos e notariado do concelho. Mas não é só por essas habilidades em dar a volta à vida que Máxima di Guida é conhecida. Ela é uma das mulheres mais populares da minha aldeia piscatória.

A residência de Máxima di Guida fica localizada estrategicamente entre o antigo Posto de Saúde da Calheta e a antiga Esquadra. Portanto, no centro dos acontecimentos mais babados. Os casos mais cabeludos da aldeia não escapavam aos olhares atentos desta mulher, que quase numa lenda se transforma. Mal a assistente Alicina do Posto de Saúde da Calheta transmitia as informações relativas ao falecimento de fulano ou beltrano, Máxima di Guida se encarregava de noticiar a aldeia, através do seu choro‑cantado. Apesar dessa sua vocação em encenar o choro, o que Máxima di Guida gosta mesmo é de grandes festas e anedotas. As estórias verdadeiras da aldeia, muitas se encontram salvaguardada na sua memória. Teve contactos privilegiados, familiares, com figuras estóricas de Cutelo Miranda, e nunca esteve desactualizada sobre a vida da aldeia. Ainda hoje, vivendo na pacata Calheta, onde nem há incêndios, nem escândalos maiores, apenas teatro de rua sob a animação de populares enfadados, o seu posto de trabalho lhe mantém actualizada acerca dos nascimentos e dos óbitos, que não deixam de ser factos demasiado valiosos para as tardes de conversas afiadas, atrás da casa de Nhu Nuna e Nha Diminga, onde a aldeia espera incansavelmente pelo regresso das lanchas, agora mais vazias do que cheias.

Nunca foi homenageada pelos serviços prestados à aldeia. Com este post tento remediar esse esquecimento, recordando também a sua atenção desinteressada dedicada às crianças da minha geração, nas horas mais perigosas da aldeia – o regresso da escola. Mas não é para falar da localização estratégica da residência de Máxima di Guida e dos seus gestos de solidariedade que escrevo este post. Escrevo para falar da consciencialização desta mulher sobre a difícil luta da mulher-rural para uma vida decente. Escutei, em primeira-mão, as reivindicações de Máxima di Guida, os seus relatos reais sobre as dificuldades que muitas mulheres da minha vila enfrentam para educar e sustentar as suas crianças, muitas sem nenhuma contribuição da figura masculina. A desresponsabilização paternal e o peso que recai sobre as mulheres é hoje alvo de críticas acentuadas, sem que contudo sejam criadas políticas públicas para aliviar a situação das mulheres. Se estas continuam as mais pobres, é tanto por falta de oportunidades de emprego, como também por causa dos custos avultados que têm com o seu agregado familiar. É sobretudo no meio rural que a situação das mulheres encontra-se mais agravada, onde a percentagem das que chefiam famílias monoparentais é mais alta, sendo as possibilidades de emprego menores do que nos meios urbanos. Na minha vila, hoje já não existem as Frentes de Alta Intensidade de Mão-de-Obra, também já não existem os serviços da antiga cooperação austríaca que empregavam mais de 100 homens e mulheres da aldeia. Uma mão cheia de homens e de mulheres se encontra no desemprego, sendo que o desemprego atinge mais às mulheres. Sem recursos para financiarem os estudos das suas crianças, agora com custos adicionais relativas à formação superior no país, na maioria dos casos sem qualquer tipo de apoio das instituições nacionais e locais.

Também é dramático o desemprego jovem. A juventude ambiciona outros voos, sendo que o trabalho no campo deixou de ser uma obrigação ou uma alternativa para quem sonha em fazer parte como sujeito activo desta era do conhecimento e das tecnologias. Em que situação se encontram muitas jovens do meio rural que se aventuram diariamente a caminho das universidades? Que estratégias estão a ser utilizadas pelas nossas jovens de meios precários para a conquista de uma formação superior? Há casos que, acontecem aos nossos olhos, continuam a fragilizar a situação das nossas mulheres. Temos que pensar nas novas situações de subordinação das nossas mulheres, que psicológica e sexualmente acabam por metê‑las num enredo tão contraditório com as leis e os discursos emancipatórias propalados pelos governos nacionais e locais.

 
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