saudades do antigamente


Na Minha Terra Também Se Ama

É hoje, pelas 18:30mn, o lançamento do
livro póstumo de Dionísia Velhinho Rodrigues, D. Bia d’Velhinho Rodrigues, intitulado Na Minha Terra Também Se Ama. Esta primeira mulher das letras da minha aldeia à beira mar morreu no passado mês de Abril, aos 85 anos, deixando o seu primeiro livro no prelo. A apresentação estará a cargo da Lígia Fonseca.


no antigamente

Falaram-me de um passado cheio de estórias vividas na minha aldeia à beira mar. Durante a minha infância, ouvia incansavelmente as estórias de boka‑portu. A noite trazia essas estórias, como se de um passo de magia se tratasse.

Às segundas-feiras, depois do ressonante “seti hora na tudu kantu di Kaoberdi”, aquele famoso noticiário na Rádio Nacional, o humorista nhu Puxim (Anastácio Lopes) desabrochava as gargalhadas lá na casa caíada de branco, onde acompanhávamos assiduamente aquele programa radiofónico. “Fidju di boka‑portu” – dizia o papai Yoto.

Ainda guardo comigo um mapa com o nome de vários membros da família boka‑portuense. Neste meu mapa porta-porta, tentei resgatar, juntamente com as personagens, alguns factos ocorridos à volta da baía do Porto. Infelizmente, hoje, ao dar uma olhadela no Mapa de Boka-Portu, apercebi-me de que as grandes referências da minha baía estão a caminhar para o mundo dos mortos. Apenas para recordar, deixo aqui alguns nomes estóricos: nha Quitéria, nha Beta, nha Liminha, Sr. Olímpio, Sr. Vicente Luciano, Sr. Velhinho Rodrigues, D. Bia, Tuy, nha Amélia, Papa di Djodja, Tio Pedro, titio Beraldo, nhu Tánazio, bisavô Manel di Santu, nha Razência, nhu Donda, Maria Miranda, Dota, Ponpilo, vó Nené d’Raul (a Elisa dos olhos cor‑de‑mel), papai Yoto, mamãi Dinora... E, há poucos meses, desapareceu a última velharia masculina do Porto, o vô Raul d’Missão.

Arrisco-me a dizer que Gil d’Jóia e o Cabiote são as figuras lendárias da minha aldeia que ainda se encontram no mundo vivente... Como dizem as estatísticas, as mulheres são mais resistentes. Por isso, ainda a pouco tempo atrás, a mais velha da aldeia era a Margarida Kraki, que caminhou para a eternidade com mais de noventa anos. Se não me engano, quase arrebentou a meta dos 100 anitos. Não tenho notícias da Nhánhá, segunda esposa do bisavô Manel di Santu. Ela deve ser a mais velha lá da aldeia. Dizem que a velhota ainda vai viver muitos mais anos. Se os factos não me falham, posso acrescentar que a pessoa que morreu com mais anos de idade na Calheta foi o Biaricá, que morreu aos 110 anos. Era o meu bisavô. Quando morreu, eu tinha nove anos. E lembro-me da mamãi Dinora a gabar-se que o velhote morreu um dia antes de completar os seus 111º primaveras. Este meu bisavô comeu muita katchupa, e não recusava um bom singuelu (desculpem o anacronismo!)...


Calheta, ma petite ville

Sempre que lá regresso, fico triste por encontrar a minha Calheta cada vez mais pobre: as grandes referências estão a caminhar para o mundo dos mortos (deixando a malta jovem desolada, sem as palavras de repressão pela rebeldia juvenil ou de incentivo pelos actos “gloriosos”).

A aldeia encheu-se de prédios coloridos e modernos, as casas dos avós estão a cair em pedaços, a noite ficou relativamente mais clara, a praça do Porto deixou de ser um espaço de estórias, a areia preta do Porto está a perder o seu brilho, os meninos da minha rua já não jogam à apanhada, as meninas já não vão às tranças na casa d’Angelina, os telemóveis abundam nas ruas, a Internet quase se transforma na praça de reencontros.

Quando cresci, a baía do Porto já estava quase vazia de personalidades do antigamente, daquele tempo que parece tão longínquo na minha memória de menina‑moça. O papai Yoto contava-me de quando os homens desciam à antiga praça velha. Quando penso na praça velha que ficava sentada no Porto de Calheta sinto um aperto enorme no meu coração. Ao lado da praça havia um Pelourinho, onde vendia-se açukrinha e um pouco da doçaria lá da aldeia. Na década de noventa, quando estudava na cidade grande, num maldito dia, recebi a triste notícia de que a praça velha ia ser demolida e que uma outra seria construída para levar a modernidade ao meu Porto. Na altura, sentia uma dor terrível mais porque tinham deitado abaixo duas velhas tamareiras que davam tâmaras tão boas aos olhos da criançada, que não deixava de atirar umas pedradas enquanto esperava pela sua vez para encher as suas vasilhas de água no velho xafariz, também agora modernizado. O meu Porto, o Porto que vinha nas estórias do papai Yoto, desapareceu e ficaram apenas as estórias e a imagem que vejo num postal da Deutsch Wagram, Áustria. Que modernidade é está que esta a apagar o meu passado, o passado de boka-portu?...

 
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