Cheguei há pouco tempo ao meu esconderijo de sempre. Coloquei a minha mochila num cantinho e fui à cozinha. Abri a torneira, durante breves segundos, caíram pequenas gotas de água estremecidas. Não me surpreendiam! Supunha do que se tratava. Fui ao contador d’água, onde encontrei, numa folha com o logótipo de Águas de Coimbra, a seguinte nota (intitulada Informação de Corte): “Informamos que nesta data procedemos ao corte de fornecimento de água às suas instalações por não ter sido efectuado, nos prazos estabelecidos, o pagamento da(s) factura(s) de água.” Poxa! Foi essa a minha reacção.
Lembrei-me de que, na cidade da Praia, muitas famílias acumulam facturas de água durante alguns meses, fintando a Electra, S.A.R.L., Empresa de Electricidade e Água. Outros até arranjam estratégias para consumirem água e/ou energia eléctrica de borla (!). Qualquer família cabo-verdiana pode usufruir na sua residência (melhor no seu pardieiro) dos serviços de fornecimento de água e de energia eléctrica. Mas tão poucas podem pagar mensalmente as despesas de consumo desses serviços, sobretudo nos bairros periféricos...
Pensando no meu drama, aqui nesta cidade distante, cheguei à terrível conclusão de que, se não pagar os míseros (?) euros de consumo e a tarifa de interrupção/restabelecimento, o fornecimento não será restabelecido... Chega de lamentações! Sei que não adianta. Amanhã tenho de pegar na minha caderneta verde e dar-um-giro até à Loja do Cidadão. Ainda tenho uns trocos na Caixa Geral de Depósitos. Estavam destinados para cobrir as despesas da encadernação de um trabalho académico que estou a realizar... Mas pronto!
Liguei a RDP-África. Música cabo-verdiana no ar! No programa “Língua de Todos” (um programa sobre português em África), o Arménio Vieira estava a falar sobre a convivência entre o português e o crioulo, em Cabo Verde. Este poeta cabo-verdiano, nasceu na cidade da Praia, em ’41. Foi elemento activo da geração de sessenta, um dos fundadores da Sèló: Folha dos Novíssimos. Tem colaboração dispersa em várias publicações, estando incluído em diversas colectâneas... O poema Toti Cadabra devolveu o meu sorriso alegre! Pouco depois, ouvi o Tito Paris cantar Dança ma mi kriola. O título desta música em francês também soa bem: Danse avec moi petite créole... Realmente o meu país não me oferece flores (mais uma vez, o problema da água serpenteia a minha memória), mas brotou a poesia e a música para acalmarem a minha angústia.
Confesso que li poucos poemas do Arménio Vieira. Conheço melhor os claridosos e a geração da independência, mas também gosto dos escritores contemporâneos (Germano Almeida, Vera Duarte, José Luís Hopffer Almada, José Luís Tavares, Dina Salústio, etc.). Como fiquei encantada com o Arménio (pelo menos, com a voz que ouvi através da RDP-África), vou comprar No Inferno, romance do autor publicado pela Editorial Caminho. No dia 26 de Junho, ele esteve na Casa Fernando Pessoa para o lançamento do seu livro Mitografias, que ainda se encontra preso na alfândega de Lisboa, por não possuir um código de barra.
Quem esteve no mês de Junho também na Casa Fernando Pessoa foi o José Eduardo Agualusa para o lançamento de As Mulheres do Meu Pai, terminando numa festa grande. Bem sei! Vi as fotos na Internet. Desde 2005, eu e um amigo meu moçambicano temos combinado uma viagem de Moçambique à Angola. Ao ler o livro do Agualusa, fui penetrando nas entrelinhas e deliciando a tesão sobre as rodas de um jipe (em vez de uma Malembelembe). André, o nosso combinado mantém-se mais firme do que nunca!
Pensando na literatura e em angolanos, lembrei-me de O Livro dos Rios, de Luandino Vieira. Como podia esquecer, se o livro está com a cara virada para mim... Gosto de literatura africana! Neste momento, estou a ler Campo de Trânsito, do moçambicano João Paulo Borges Coelho, que comprei com 10% de descontos na Coimbra Editora. Tinha 5€ e cerca de 8€ no meu cartão-multibanco. Encarei a jovem no balcão e perguntei:
- Posso pagar 5€ em dinheiro e o resto com o cartão? (Eu sabia que era possível usar esse estratagema. Pois já o tinha usado noutras situações).
- Não! Não é possível.
- Acho que é...
A jovem perguntou à sua colega, que se apressou para me socorrer, depois de ter passado uns bons 15mn à procura do livro acabadinho de chegar da Editorial Caminho. Foi o livro que escolhi como a minha prenda de 5 de Julho. Coloquei na minha cabeça que, pelo menos enquanto for estudante, não passarei o aniversário da independência de Cabo Verde sem um livro novo. Este ano optei pela literatura moçambicana. Escolhi uma obra do João Paulo (nome da minha primeira paixão frustrada, em Coimbra), porque ele tinha uma conferência marcada no Centro de Estudos Sociais. Gostei da conferência! Aproveitei para autografar a obra: “...com a estima do João Paulo. Coimbra 5 de Julho.”
Comecei a ler o livro ontem a noite. Estou na página 25. Pensei no Mungau e senti uma sede fina das águas cristalinas das antigas ribeiras, que corriam em Cabo Verde... Ainda bem que, antes de começar a escrever esse pequeno registo diário, fui, ao Pingo Doce, comprar um garrafão de água!... A água para o povo cabo-verdiano não é apenas água. É água (!), com o sabor de terra.
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Reflexão
Enquanto o acesso à água não for considerada um dos direitos humanos, essencial para a sobrevivência humana, episódios como o que acabei de relatar (onde nem tudo é ficção) levam-me a reflectir sobre as desigualdades cada vez mais gritantes neste mundo em que vivemos. Levam-me a pensar nas tantas crianças e mulheres africanas que saem bem cedo, percorrendo km’s, à busca d’água; penso também no custo elevado para o seu acesso, sobretudo nos bairros mais degradados e ainda na qualidade de vida de muitas famílias que utilizam d’água sem o mínimo tratamento, o que contribui para o aumento das doenças consideradas típicas dos países descartáveis (como parecem ser considerados).