1.3. Praça das Estórias

«Numa noite de Verão, à varanda da nossa casa frente ao mar e hoje frente à Praça, contemplava a minha aldeia mergulhada numa escuridão tremenda e eu, sonhadora e romântica, antevia Calheta num prisma diferente: uma Vila iluminada e com vida nocturna capaz de desafiar a própria Vila do Tarrafal. De mansinho, o mar beijava a praia na areia luminosa, como que debaixo do cântico da magia das sereias.»

Dionísia Velhinho


Utopicamente tinha pensado que em cinco dias ia conseguir dar conta do sucedido, mas, pelo andar da caminhada, apercebi-me de que vou precisar de mais diazitos para relatar este sonho. Bom, foi assim...

Nu kebra kel matacan de penedu kés botá dentu-l di nos Portu, reconstruímos a nossa Praça das Estórias, uma praça rasa para recordar a antiga praça do Porto. No lugar onde havia o Pelourinho, montámos dois pequenos Quiosques Turísticos simbolizando a ressurreição do monumento, bestialmente assassinado em meados da década de noventa do século XX.

Um camião de areia limpa e fresca encheu a baía negra de brilho. A Cooperação Japonesa desembarcou um barco de pesca todo branquinho na nossa baía. Salvador d’Kalina foi o primeiro a avistar o barco e logo recordou daquele tempo em que ele mesmo descobriu um Yate nas nossas águas e trouxe para repousar na nossa baía até que o dono veio buscar. Também recordou os bons anos em que a Landa repousava na baía, após uma boa pescada, trazendo peixes para o kaldu pexi da aldeia. Nunca dantes o nosso kaldu pexi teve tanto sabor de peixe! Então, por deliberação da Assembleia da Aldeia, o nosso barquito foi baptizado de Nossa Landa. Três lanchas de riscas passaram a descansar atrás da casa de Nhu‑Nuna e Nha‑Diminga para colorirem o Porto. Depois da ida ao mar, aparecem sempre pescadores enfadados que remendam as suas redes.

Falando nas praias da vila, a praia da Batalha recebeu como oferta um lindo projecto esboçado por jovens ambientalistas (brevemente, gostaria de partilhar convosco uma imagem da rejuvenescida praia da Batalha). Ainda esses jovens ambientalistas apresentaram o Plano B para a preservação das tartarugas que aninham nas nossas areias macias. Para além de que agora nenhum micaelense come carne das tartarugas ambulantes, conseguimos arranjar alternativas para a mulherada e criançada que extraia arreia nas nossas praias. Areia Branca voltou a encher­-se de grãozinhos dourados; Cadjetona é agora a menina de todos os festivais.

No antigo pedra-pexi edificámos o Monumento do Pescador, com a figura do mais antigo pescador da aldeia, observando o estado do mar. Cabiote foi um pescador impar de toda a aldeia, aparecendo no monumento ku dos pé di kalça ramangadu, mô na kexada ta kuda ngratidon di txuba y maré kasabi. Ao lado do monumento, o escultor praiense concordou que gravássemos um poema do nosso poeta, especialmente poetizado para não esquecer o sofrimento do povo de boka‑portu. Para completar, a família boka-portuense passou a receber periodicamente as dez páginas da Revista de Boka-Portu. E a jornalista Aidé Carvalho criou um site na Internet, onde alojou o Jornal da Aldeia.

A casa do falecido Tio-Pedro passou a ser o Posto do Pescador, onde encontra-se tudo o que um pescador ou um turista armado em pescador precisa para a pesca. A antiga mercearia da parteira Maria Miranda, passou a ser a Loja dos Remédios, contendo um conjunto variado de chás e óleos tradicionais para o parto, o reumatismo e até para uma simples gripe febril. Também a antiga Farmácia do Porto e o antigo Posto de Saúde da Calheta ressurgiram nos lugares de outrora.

Zita continuou na sua casa, agora pintadinha de cores do mar. Os seus bordados e rendas tradicionais passaram a render tostanitos. Maria Djuzé reabriu as portas do seu cinema caseiro, oferecendo filmes de acção às sextas e telenovelas brasileiras nas noites de manso luar. Na Praça das Estórias, a criançada da vila passou a ouvir estórias dos avós aos sábados e, de quando em vez, aparece lá o Nhu‑Puxim para desabrochar as gargalhadas mais bonitas do mundo.

Na antiga loja do Sr. Olímpio e Nha-Liminha, Djá abriu uma Lojinha de Retalhos. Na antiga loja da família Vicente Luciano, surgiu a Cozinha de Boka-Portu, um pequeno restaurante onde só servimos pratos típicos: katxupa rafogadu ku longuiça y ovu streladu; peixe fresco grelhadinho; salada de variedade nenhuma; peixes e mariscos de diversidades incontáveis. A açukrinha tornou-se o docinho para todos os miminhos. Até há donas que querem abrir uma Açukrinheira!

A casa da família Vicente Luciano foi transformada na municipal Pousada das Sereias. O velhinho sobrado da família Velhinho Rodrigues passou a ser o Museu da Poesia, recebendo visitas nacionais e internacionais e grandes doações de obras para cultivar a cultura. Em vez de petróleo, na Loja do Pompílu, Cida passou a comerciar materiais de iluminação, com destaque para as lâmpadas económicas. Brincando um pouco para passar a mensagem, Cida fixou à frente da loja uma caixinha para a venda de preservativos (1 por apenas 5$. Ubááa!!! Há mais: no Posto de Saúde da Calheta é gratuito e confidencial!).

Polivalente Grande foi remodelado, podendo receber torneios de futebol, andebol, voleibol, basquetebol e atletismo. Polivalente Pequeno foi doado à Associação de Estudantes de São Miguel, onde a malta estudantil pode viajar pelo espaço ciber na total gratuitidade, e usufruir das boas leituras. Antes que me esqueça, eu e a kota Zabel abrimos a tão esperada Livraria Monteiro, no segundo piso da casa-cor‑de‑rosa, agora na sua feição moderna‑tradicional, tendo lá dentro um espaço para materiais escolares, um cantinho encantado para a criançada e um pequeno esconderijo de poesia ao sabor de um chá quentinho.


joviando

No final do dia, passamos a assistir futebolanda na areia do Porto, antes do desejado mergulho na baía da nossa infância. Aos sábados, temos sempre o sagrado futebol feminino, arbitrado por jovens de tão sábios conhecimentos futebolísticos.


ruas recém-nomeadas

Com a fundação de Rua da Holanda, a tonelada de boka-portuenses residentes naquele país europeu decidiu fazer uma vaquinha e procurar financiamentos extra‑especiais para calcetar a dita rua, bem como trazer contentores novos para arquivar os lixos vidoeiros, papeleiros e plastiqueiros.

Foi uma chicosidade que a malta residente em França, desatinou e criou a Rua de Paris. Pouco tempo depois, nasceu a Rua de Lisboa. Entre estas ruas recém‑nomeadas, pode-se comer às quartas-feiras comida portuguesa, às quintas-feiras comida holandesa e às sextas-feiras comida francesa. Tudo na perfeita perfeição, com música ao vivo, que só um freguês ou uma freguesa avisado/a lembra-se de que afinal está na pacata vila da Calheta.

Para mata-bichar a população de boka-portu, Manuelon inaugurou a padaria Pão de Mar-ino, onde bolaxona e pão de sal saem directamente do forno para a manteiga. Zú não resistiu e meteu lenha no Forno da Titosa, alternativando com pão doce e bolinhos de areia.


batucando

Festival Funaná e Batuque voltou à sua aldeia, agora festivada em Cadjetona, iluminada por favas de luz. Sim, agora tudu mundu na areia ta sakuta nos tradison...

 
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