«os nossos valores»
Num artigo de opinião, publicado no asemana online, Dulcineia faz um apelo para a mudança de atitudes, tendo em atenção a violência e a onda de assaltos na nossa Praia. Diz a cronista que “é angustiante viver numa sociedade onde pouco podemos fazer, porque vivemos amedrontados.” Ainda realça a sua angústia perante a fraqueza dos nossos valores para fazer frente a situações de violência na nossa pequena capital.
Para quem convive diariamente com a insegurança flutuante dos últimos anos na Praia, para quem se encontra na diáspora, ou mesmo para um/a turista, custa acreditar como a violência urbana penetrou fortemente a capital cabo‑verdiana. É lamentável como as autoridades pouco conseguem fazer para apaziguar o clima de insegurança instalado! Mas não é por esse caminho que a Dulcineia nos conduz. Ela questiona os nossos valores. Apela-nos. Coloca-nos entre as paredes.
Escutando a angústia do meu colega e amigo KaKa, acabadinho de regressar da capital, tirei minutos do meu tempo para reflectir sobre o artigo da Dulcineia. Sinceramente, não consegui pegar num livro sobre a violência urbana tão falada noutras cidades (Rio de Janeiro, Bissau, Lisboa, etc.). Mas a nossa Praia é tão pequenininha e nós somos primos e primas! Bom, fiquei sentada na minha poltrona a imaginar os segmentos da população cabo-verdiana com poder económico para esconder em condóminos fechados nas novas urbanizações, desinteressando completamente com o que se passa para além dos muros da sua segurança familiar; na quantidade de escudos/euros/dólares gastos em carros blindados; na nova moda de empregar «os homens da costa» como cães‑de‑guarda das vivendas no Palmarejo, bairro de estimação dos thugs... Mas a nossa Praia é tão pequenininha e nós transbordamos a morabeza e a elegância na nossa forma estar!...
Também “imagino o desespero de uma mãe, que às 6h da manhã acorda com a notícia que o filho está no hospital, porque foi espancado numa festa. Uma festa privada, num ambiente selecto.” Oh, Dulcineia, isso corta o coração de qualquer mãe! Porém, acho que enquanto a violência atingir os filhos das outras mães, enquanto não bater na porta da nossa mansão, continuaremos a dormir os nossos soninhos!...
E lá em casa?
A minha avó Dinora ficava acordada a noite toda, quando eu e o meu mano íamos para uma festa de aniversário no poial de cima. Quando havia música na praça do Porto, ela argumentava que era bem melhor ficarmos em casa, escutando a partir da nossa varanda. Nós, juventude rebelde, desaparecíamos feito foguetões e regressávamos nunca na hora prometida, encontrando a velhota com o coração nas mãos. Só depois de escutar os nossos passos pelos corredores da casa é que ela conseguia dormir sossegada. Graças à Nossa Senhora do Perpetuo Socorro e ao São Miguel Arcanjo, a velhota nunca teve razões para se preocupar com o nosso comportamento fora de casa!
Nos anos em que estudei na Praia e em Assomada e o meu mano no Tarrafal e em Assomada, a minha avó morria de saudades, rezando para que nada de mal nos acontecesse. Quando chegávamos para os fins-de-semana ou as férias na aldeia, escutávamos os seus ensinamentos acerca do respeito ao próximo e da não‑violência. No dia 10 de Novembro do ano 2000, ao pegar na minha velha mochila de couro para seguir viagem, a avó virou para mim e disse: “filha, respeita o próximo!” Este foi o último conselho que ouvi da boca da mulher que transmitiu os valores que norteiam a minha vida. Porém, durante a minha adolescência, achava chatíssimos os moralismos e aborrecidos os valores que, na altura, considerava retrógrados, mas a vida mostrou-me que afinal a velhota tinha razão ao fincar o pé na nossa educação, ao limitar as nossas saídas, ao exigir que chegássemos na hora combinada e ao nos mostrar o bolso vazio.
Servíamos o jantar às 19h e todos os membros da família tinham que estar em casa. Para mim, 19h era a pior hora do relógio. Tinha que interromper qualquer conversa na esquina, ou um jogo feminino no Polivalente Grande, porque temia o olhar severo do avô Yoto. Cresci atrevidinha, pensando que ia me libertar do temível 19h. Muito pelo contrário! Hoje, quando vou à capital, durante o dia tenho de me manter sempre atenta e, após as 19h, nem ouso sair de casa sozinha, nem chegar na companhia da minha própria pessoa. Não posso dar ao luxo de andar pela noite na minha capital, nem ir ao mar por aquela rotunda onde tudo pode acontecer. Pior mesmo é pensar em pegar um táxi. Nunca se sabe aonde os taxistas vão parar. Claro, há sempre o exagero na prevenção de um possível kaçu‑bodi, mas... Urgentemente, preciso de me libertar do medo de segurar no volante. Alguém me oferece um starlet!